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Foto: Daniel Magalhães |
O primeiro contato com a literatura veio dos gibis do Chico Bento, personagem do Maurício de Sousa, que pertenciam ao seu pai, o operário Fábio Silva. A antiga coleção do pai, em folhas já amareladas e gastas pelo tempo, foi o primeiro contato de Fabson com a ficção. “Eu me lembro que eu lia aqueles gibis e não entendia muito. Mas gostava de ver as imagens. Mas uma coisa que nunca saiu da cabeça, é que muitas vezes eu colava os gibis na parede do meu quarto. Achava bonitinho como ficava tudo colorido”.
Foi a mãe, Edilma Pereira, cuidadora do lar e da família, quem atendeu a um pedido inusitado de Fabson aos 7 anos. “Toda a nossa vida girava em torno da Capital, ou da 'cidade', como a gente chamava. Um dia, no Centro do Recife, vi com meus próprios olhos uma máquina de escrever numa daquelas lojas de souvenir. Não consegui tirar aquilo da cabeça até ter uma. Quando meu olhar bateu naquela máquina, foi como se eu me reconectasse com algo de muito tempo atrás, como um reencontro com alguém muito querido”, relembra ele. A máquina chegou como um presente. “Uma preciosa Olivetti Lettera 82, seminova, claro. Em perfeito estado”.
As brincadeiras da infância sempre giraram em torno da ideia de ser professor. Fabson montava sala de aula com os ursinhos de pelúcia, que eram seus alunos fiéis. “Eu sei o nome deles até hoje, mais de 20 anos depois. Ínho, Macaco, Teresa, Piu-Piu, Mini, Helen. Nunca falaram nada, era uma classe silenciosa, mas me ajudaram a ser quem eu sou hoje. Porque eu aprendia e ensinava para eles. E aí, eu aprendia de verdade”.
A casa no bairro de Socorro, numa região ruralizada de Jaboatão, era preenchida pelo som das teclas e do carimbo da máquina de escrever. E, por muito tempo, conta Fabson, os ursinhos foram seus únicos amigos de infância. “Havia um pré-conceito, porque eu era de uma família de origem católica, e a vizinhança era evangélica protestante. Eles não gostavam de se misturar. Os pais não deixavam seus filhos brincarem comigo. Não foi uma infância solitária, porque eu tinha meus ursinhos... E eu tinha meu galo Pépéu, minha galinha Bob e as cachorras Juma e Môa”. Ele também se lembra com afeto das idas ao sítio dos avós maternos, às margens da barragem Duas Unas, em Manassu, onde vivia de pés no chão, entre o mato, a lama e a tranquilidade dos dias longos.
Sou muito ligado às minhas raízes, à terra e ao que me forma. Mas desde cedo, sonhei em conhecer o mundo. A terra sempre me ensinou onde pertenço. Mas o desejo de ver o mundo sempre me moveu. Habito esse equilíbrio entre o enraizamento e o voo. Entre o local que me forma e o global que me transforma.
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Foto: Arquivo pessoal |
Foi no auge da popularização da internet, por volta de 2009, quando as famílias mais simples começaram a ter acesso a computadores e à internet em casa, que uma nova fase na vida de Fabson teve início. “Existiu um jogo, ou melhor, ele existe até hoje, chamado Habbo Hotel. E eu sou profundamente grato a esse game on-line, que me moldou de maneira profunda e desenvolveu meu lado literário, quando nem sequer fazia ideia do que isso significava”.
Fabson conta que, nesse período entre o fim da infância e o início da adolescência, o jogo lhe ofereceu a chance de viver um verdadeiro conto de fadas. Dentro do game, era conhecido pelo seu personagem "onnellinen", na comunidade de RPG de Harry Potter. “Eu criava ambientes e os enredos das histórias, e todas as noites, mais de 50 pessoas lotavam meu mundo virtual para jogar e fingir que eram bruxos. O requisito básico para participar era saber escrever as descrições das jogadas com perfeição. Toda a performance do RPG era baseada na descrição textual. Então, se você quisesse respeito na comunidade, precisava escrever bem e interpretar bem o texto. Isso me ajudou demais a evoluir minha escrita, porque, mesmo sendo muito novo, eu administrava tudo sozinho”.
Após os jogos, veio o YouTube. Fabson teve uma adolescência profundamente marcada pela plataforma de vídeos. Criava novelas, webshows e programas de entrevistas, se divertindo com a criação de conteúdos próprios. E então vieram os blogs. De denúncias sociais à literatura, Fabson foi autor de diversos blogs durante sua adolescência. Nesse período, a partir de 2012, começou a frequentar o Clube do Livro de Pernambuco/Mais Clube, grupo de pessoas que se reunia para discutir livros e compartilhar opiniões e experiências, além de ter sido a porta de entrada e contato de Fabson com o mundo real da literatura. Eram encontros mensais, em que participavam diversos leitores e escritores de todo o país.
No ensino médio, na Escola de Referência Rodolfo Aureliano, uma das mais tradicionais e prestigiadas da região de Jaboatão, ele criou um projeto que refletia as condições da infraestrutura do ensino público e as dificuldades enfrentadas pelos alunos. Era um aliado tanto dos estudantes quanto dos professores na reivindicação por melhores condições. Fabson escrevia sobre o dia a dia na escola numa página do Facebook chamada “Em Classe”. Era um diário de crítica e reflexão social.
“Desde muito cedo, eu tive que aprender a lidar com a crítica e com pensamentos contrários aos meus. Isso foi muito importante para a minha literatura, mas mais ainda para a minha vida, enquanto ser humano em um mundo de profundas transformações diárias”. Foi durante esse período — marcado também pelo falecimento dos avós maternos — que Fabson escreveu seus primeiros livros em prosa.
O país enfrentava instabilidades em 2014, e o futuro, para o jovem Fabson de então 17 anos, era incerto. Nenhum membro da família, que se tenha notícia, havia integrado o corpo discente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele foi o primeiro, em gerações, a ingressar em uma instituição federal de ensino superior.
Sou muito grato à minha família. Principalmente aos meus pais Edilma e Fábio, que me apoiaram e me incentivaram muito. Foi um momento especial, que mexeu com tudo o que eu conhecia. Também agradeço a todos os meus professores, tenho muito respeito. E, claro, aos meus amigos da época. Também saúdo as políticas públicas de incentivo e acesso à educação. Eu sou reflexo disso. Eu era só um rapaz do subúrbio de Jaboatão, sem muita pretensão, mas com uma vontade imensa de chegar lá. E esse 'lá' ainda é um lugar que estou tentando descobrir.
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Foto: Arquivo pessoal |
Aos dezessete anos, ele era um dos mais novos da turma de Jornalismo de 2015, no Departamento de Comunicação da UFPE. “Isso foi um problema muito grande pra mim. Apesar de já ter um histórico de ter criado projetos sociais, um feito à frente da minha realidade social, fui muito mal interpretado no começo da faculdade. Eu precisava de mais maturidade. E a universidade me deu isso — a duras custas”.
Fabson lembra que a adaptação à cultura da universidade não foi fácil. “Isso me afastou muito da literatura. A academia me fez ler muito, sim. Mas também me fez abrir mão daquilo que me movia. Eu queria ser jornalista. E tentei me enquadrar numa caixinha. Demorei a perceber minha multiplicidade. Demorei a aceitar que isso também era bom”.
O período universitário foi a locomotiva para as grandes transformações da sua vida. “A faculdade serve pra isso: remexer nossas crenças e forjar alguém com um olhar mais fincado na realidade. Hoje, com mais serenidade, reconheço que tive uma experiência maravilhosa na universidade e fiz grandes e inesquecíveis amigos. Tenho um carinho e respeito profundo por todos daquela turma de 2015 — são pessoas fantásticas e profissionais acima da média. Sou muito grato a UFPE, aos professores e aos servidores federais. Ali, cresci muito. Não apenas como profissional, mas como ser humano. A formação em Comunicação, eu diria, deveria ser a base para qualquer pessoa”.
Apesar de estar afastado da literatura durante o período acadêmico, vez ou outra ela voltava a se manifestar. Fabson participou de projetos como o “Gaveta de Letras”, um portfólio coletivo de textos de aspirantes a escritores.
“Vivi o máximo que pude da UFPE. Almoçava no restaurante universitário todos os dias, fiz estágio na Assessoria de Comunicação da própria universidade, participei de ações no Hospital das Clínicas, fui bolsista em projetos como a Rádio Paulo Freire — da qual me orgulho muito de ter integrado a equipe responsável por trazê-la de volta ao ar — e participei de várias edições do programa Fora da Curva, vinculado ao Núcleo de TV e Rádios Universitárias da UFPE. Minha graduação foi concluída com a defesa de uma pesquisa de mais de 100 páginas sobre o uso dos Instagram Stories pelo jornalismo brasileiro — um tema ainda inédito na época. Foi um período em que eu era muito feliz e sonhador. E, de todo jeito, mesmo quando parecia adormecida, a literatura sempre dava um jeito de se manifestar em mim”.
O conto de fadas, no entanto, acabou. “Quando me vi com o diploma na mão e sem a carteira de trabalho assinada, foi desesperador. As coisas deram muito errado na minha vida naquele período, em todos os sentidos. E, pouco tempo depois, veio a pandemia, que carimbou de vez os anos de infortúnios”.
As instabilidades sociais de 2018 racharam diversas estruturas — emocionais, políticas e sociais. Os limites entre pensamento, opinião e chantagem emocional ficaram tênues. E tudo isso acabou se refletindo na literatura de Fabson, que dois anos depois escreveu uma distopia que criticava as alienações políticas e sociais da época. “Não tive força pra colocar essa história pra frente. É um texto que ainda precisa ser melhor trabalhado. Quem sabe no futuro?”
Em 2020, Fabson assumiu o posto de repórter no caderno de Vida Urbana do Diario de Pernambuco — o jornal mais antigo em circulação na América Latina e o mais longevo publicado em Língua Portuguesa no mundo.
Esse período como repórter em tempo integral, especialmente durante a pandemia de Covid-19, foi um dos mais intensos e importantes para sua jornada literária. “A carga emocional do trabalho era muito grande. Estávamos vivendo um dos piores momentos da história da humanidade, com mortes sendo contabilizadas todos os dias e anunciadas nos jornais. Isso era horrível. Tínhamos medo de nós mesmos. Nossa sombra era nossa inimiga. Apesar da pandemia, a vida continuava. Eu saía nas ruas a trabalho, cobrindo e noticiando o que acontecia nas cidades da região. Vi o Recife em pleno Carnaval completamente vazio. Havia uma tristeza profunda espalhada por toda a cidade. Foi uma das emoções mais fortes que carrego comigo. Mas não queria levar isso tão profundamente. Daí, minha sorte é a literatura — ela me permite extravasar e me deixa mais suave”, brinca.
Outro projeto que marcou esse período foi o “Vilariquense” — um jornal de bairro criado por Fabson para informar os moradores da comunidade sobre a Covid-19. “O projeto evoluiu tanto que passou a produzir materiais para resgatar a autoestima da população local”, completa.
Depois da virada da década de 2020, um novo ciclo começou com a mudança de Fabson para o estado de São Paulo. Radicado em Valinhos, na região de Campinas, ele abraçou o marketing como uma faceta da sua jornada profissional, enquanto a literatura segue firme como um pilar de crítica social e pertencimento — seu lugar de reconexão com o mundo e com ele mesmo.
Se Pernambuco formou meu caráter, me deu intelectualidade, espírito social, São Paulo foi o empurrão que me mostrou os Brasis dentro do Brasil e todo o mundo além. Com isso, meu sotaque misto, minha identidade ambígua... fiz da minha divergência cultural a minha unicidade, minha história — o legado que eu quero construir e perpetuar com a minha literatura.
Estar no estado de São Paulo não apenas abriu portas para novas oportunidades profissionais — fez Fabson Gabriel Pereira amadurecer e crescer como pessoa. "Foi aqui em São Paulo que me entendi brasileiro. A identidade pernambucana e o orgulho pernambucano são muito fortes. Recife é uma capital que exerce uma influência cultural enorme. A cultura recifense é viva, pulsante. E o recifense é, com razão, bairrista, orgulhoso de si próprio. A cultura e a intelectualidade do Recife dispensam apresentações — são imbatíveis. Isso faz com que a gente se reconheça, muitas vezes, mais pernambucano do que brasileiro. Mudar para São Paulo, conhecer diversas regiões do estado e, ao mesmo tempo, viajar por todos os cantos do país, me fez compreender a minha brasilidade. Me fez, de fato, perceber que eu sou brasileiro. E isso é bom!”.
Além de escritor, Fabson Gabriel Pereira é comunicador, jornalista e profissional de marketing (atua numa multinacional de máquinas pesadas). Possui especialização em MBA em Marketing Digital e MBA em Marketing e Experiência do Usuário (UX). Também é criador do site Propagavel, voltado para temas como mídia, influência digital e o universo da inovação. No tempo livre, frequenta aulas de teatro. Se não está lendo, está escrevendo um novo romance — ou vice-versa.